MACROSCÓPIO | “Como nossos pais”: Elis Regina, medo e delírios com Inteligência Artificial

Um comercial criado pela Volkswagen tem levado lágrimas aos olhos de quem o vê.

Uma parte tem achado lindo, enquanto do outro lado, o que mina dos olhos é raiva e indignação.

Teve gente lembrando da posição da companhia de veículos durante a Ditadura e o Conar até abriu processo para investigar a campanha. Mesmo o grande Eugênio Bucci chamou o vídeo de “profanação da Kombi“, junto de outros adjetivos menos bonitos.

Sem nem mesmo acionar o funcionamento das aplicações de IA para discordar, há algo importante sendo ignorado pelos críticos. O argumento principal contra o vídeo é a apropriação da imagem de Elis para representá-la em contexto que supostamente não lhe cabe, manipulando as memórias que se tem dela ou mesmo tentando construir uma representação da diva que não condiz com a realidade.

Vejamos. Ainda neste ano, Elis Regina deve voltar a ser assunto por conta do lançamento de um documentário, Elis e Tom, Só Tinha que Ser com Você, com direção de Roberto de Oliveira e Jom Tom Azulay . A questão aqui é: porque ninguém entra com processo pela representação fictícia de Elis Regina no vídeo que irá — sem IA — ser exibido nas telas de cinema? “Mas como assim?!”, bradam os críticos, incédulos, “a Elis que aparece nas filmagens do documentário é a Elis de verdade! Sua imagem não foi manipulada ou gerada em computador!”. O juízo expõe a maneira tacanha com que interpretamos boa parte do que é digital e o que não é processado em bits.

O que será mostrado nas salas de cinema — e também o que vemos na peça de publicidade atacada — são imagens de Elis Regina, e não a cantora em si. Nenhuma tela, papel, pedra ou qualquer outro suporte seria capaz de apresentar a cantora em si, mas apenas imagens dela. Se a turba que inssurgiu contra o comercial da Volks ainda quisesse insistir, poderia dizer que, diferente do deepfake da peça publicitária, as imagens do documentário não foram geradas ou criadas, mas apenas capturadas, o que permitiria classificá-las, de alguma maneira, como mais verdadeiras. Errado: tanto técnica quando simbolicamente.

As imagens capturadas para produzir o documentário são renderizadas em pixels pelo projetor que vai produzi-las de determinada maneira no fundo branco da tela de cinema — e esse equipamento, em associação com as configurações do arquivo digital reproduzido, as especificações de cabos, lentes, tela, processadores e uma miríade de outros objetos é que vão definir qual imagem de Elis será exibida — e como será. Se ignorássemos tudo isso — tarefa fácil para os adeptos da purificação entre sujeito e objeto nas ciências –, ainda seríamos obrigados a admitir que as escolhas de angulação, tempo, luz, áudio, planos e tantas outras decisões de filmagem (sem falar sequer na edição das gravações) montam uma imagem claramente manipulada, construída de maneira absolutamente subjetiva, do sujeito Elis Regina.

Onde está, portanto, a diferença?

Os puristas que preprarem seus ouvidos, porque Beto Lee já disse que não teria nada contra ver a mãe ressuscitada entoando “Agora só falta você”.

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