MACROSCÓPIO | “A República dos Piratas” e a colonização da Web

fotografia de bandeira pirata, de cor negra com uma imagem de caveira e duas espadas cruzadas

A primeira edição de A República dos Piratas, de Colin Woodward, foi publicada em 2007. Naquela época, o Netflix ainda não havia ganhado as salas de casas pelo mundo. O Spotify engatinhava para tornar-se um ícone essencial nas telas dos celulares. A web, por sua vez, estava cheia de foras-da-lei que recebiam o mesmo nome dos heróis do livro de Woodward. Álbuns inteiros vazados em mp3, gravações de filmes até então disponíveis apenas no cinema e arquivos convenientes de legendas, frequentemente produzidas pelos próprios piratas, inundavam um número gigantesco de sites que ofereciam tudo isso de graça, a quem quisesse pegar. No entanto, tal como a república pirata de Nova Providência, o paraíso dos torrents ilegais durou pouco — embora movimentos recentes pareçam oferecer evidências para um retorno.

Os piratas e o livro

Com pesquisa extensa e documentada, Woodward guia o leitor pela história da ascensão e queda da república-título do livro, mostrando como um cerco orquestrado pela realeza inglesa e capitaneado pelo comodoro Woodes Rogers pôs abaixo o sonho de um império pirata sediado em Nassau. A obra não é exatamente uma ficção baseada em fatos reais, já que o autor raramente toma liberdades criativas para supor o que pode ter acontecido, mas sim um relato de pesquisa histórica acessível e de leitura fascinante.

Apesar de concentrar-se nas histórias de Barba Negra, Charles Vane e Sam “Black Sam” Bellamy, também há feitos de vários outros piratas, corsários e bucaneiros notórios que cruzaram o caminho desses três primeiros: Ben Hornigold, Jack “Calicô” Rackhram, Paulsgrave Williams, Stede Bonnet, Anne Bonny, Edward England, Olivier La Buse e o lendário Henry Avery tiram muita tinta da caneta do autor.

Em termos políticos, é admirável como os piratas — criminosos notórios, inimigos de qualquer Estado e terror da ordem instituída — teriam sido os primeiros a fundar alguma espécie de democracia no continente americano. Embora não tivessem um único líder para todos os piratas, as tripulações sempre escolhiam seus capitães por meio do voto, assinavam documentos que estabeleciam os termos de reparte dos butins e respeitavam decisões tomadas em colegiados, nos quais todos tinham voz.

Com licença do anacronismo, ainda mais extraordinário é o tratamento igualitário que mulheres, crianças e negros e indígenas libertos recebiam do resto dos piratas, quando decidiam juntar-se à tripulação. Tinham direito a fala, voto e a sua parte de recursos, como qualquer outro com quem compartilhavam o convés, suas tarefas ou batalhas. Anne Bonny abandonou seu marido para ser uma figura célebre daquele momento, com atuação direta em várias conquistas ao lado de Jack Rackhram, praguejando contra quem a aborrecesse e escandalizando os grupos puritanos de Nassau com seu comportamento, que era tido como lascivo. Mary Read teria sido criada como menino e seguiu travestida em sua trajetória na vida pirata, julgada por ser quem era apenas quando seu bando foi capturado por corsários ingleses a serviço da coroa. Morreu na prisão, supostamente grávida, depois de usar essa condição para fugir da forca.

Tal como na mitologia que sobreviveu para romantizar suas histórias, a figura dos que velejavam sob a bandeira negra carregava um ar de aventura, liberdade e justiça para boa parte das pessoas do século XVI. Essa visão dava motivo a adesões espontâneas como a de John King, menino de dez anos que, ainda calçando suas meias de seda, deixou sua mãe a bordo de um navio de passageiros para seguir o comando de Black Sam. Porém, é claro que muitos dos marinheiros ou passageiros dos navios capturados eram simplesmente forçados a juntarem-se ao bando, muitas vezes com ameaças de morte ou sob tortura. Também era comum que muitos dos piratas mantivessem escravos entre suas propriedades.

Dentre as sagas narradas, a história de Sam Bellamy é a que mais cativa o leitor ávido pela jornada de um herói. Veio de uma origem humilde para firmar-se como uma espécie de Robin Hood do mar, tirando dos ricos para dar a si mesmo e a seu grupo de marujos sujos, formados por nativos das ilhas adjacentes, escravos fugidos e marinheiros que deserdaram da marinha real inglesa. Tinha a lealdade absoluta de seus homens, comandou uma esquadra pirata de 5 embarcações e ficou conhecido por ser gentil com seus prisioneiros, deixando-os seguir viagem com seus navios esvaziados pelo bando, mas com casco e tripulantes ilesos. Ainda assim, o autor não deixa de destacar ameaças de morte e maldições proferidas pelo capitão para descobrir tesouros a bordo de navios capturados ou obter informações sobre outros alvos.

Woodward (que não parece ter parentesco com o renomado Bob, do caso Watergate) é jornalista, historiador e editor no POLITICO. Seu ofício como jornalista parece ter contribuído para apoiar boa parte de sua pesquisa em notas e notícias de jornais ingleses e americanos, como o Boston ou o , além do livro História geral dos piratas e suas conquistas, publicado sob um pseudônimo que é atribuído ao editor de um jornal da época. Além da simplicidade didática com que Woodward conduz o leitor pelas redes de intrigas e disputas do caribe dos 1700, as notas de rodapé são um apoio muito bem-vindo para se situar com as datas e eventos específicos que produzem consequências dos dois lados do Atlântico, além da conveniente lista de documentos de referência ao final, indicando as fontes para cada evento narrado, sumarizadas por capítulo.

O livro inspirou a série Crossbones, produzida pela NBC, estrelada por John Malkovich e lançada em 2014, mas que foi fracasso de audiência, cancelando qualquer plano de uma segunda temporada. Os 9 episódios produzidos contavam a trajetória de Barba Negra e seus embates indiretos com Woodes Rogers por meio do médico Thomas Lowe, ainda que o livro de Woodward não dedique uma única página a qualquer interação entre os personagens. Se for pela ficção pipoca, melhor assistir Black Sails.

A pirataria e a internet

Nassau era uma terra desinteressante para as potências de seu tempo e foi apropriada como a base de operações de múltiplos grupos de piratas no início dos 1700. Dentre os mais notáveis estava a Gangue Voadora, comandada por Ben Hornigold, considerado um dos pioneiros a estabelecer o local como um refúgio seguro para gozar dos espólios, compartilhar informações e fazer reparos ou melhorias nos navios. A própria geografia de seus portos de acesso e a conhecida presença de piratas naquelas imediações da Ilha Hog impediu por muito tempo qualquer tentativa de estabelecer ali uma colônia produtiva de quem quer que seja — Inglaterra, Espanha ou França. Os piratas tinham conseguido um lugar onde poderiam usufruir dos recursos daquelas terras (e de sua pilhagem) sem a interferência de qualquer sujeito com uma coroa na cabeça ou com um chicote em mãos — embora houvesse um grupo que se identificava com as reinvindicações de direito à realeza de James Stuart.

A história da pirataria na internet tem caminhos diferentes, mas propósitos parecidos. Com o barateamento da tecnologia, filmes e músicas começaram a ganhar formato digital com os CDs e DVDs na década de 1990, seguindo um caminho de sucesso traçado pelos videogames desde a sua concepção como indústria, com os arquivos de jogos armazenados em cartuchos. Com a (relativa) popularização do acesso à internet na alvorada dos anos 2000 e a prática de preços abusivos de venda que não refletiam as quedas nos custos, não demorou muito para que esses arquivos encontrassem seu caminho para a livre oferta em dezenas de milhares de sites. Na prática, os endereços roubavam arquivos digitais não só para uso próprio, mas também para disponibilizá-los a qualquer um que acessasse o endereço, levando a escala da pirataria a níveis jamais imaginados pelos seus predecessores do século XVI.

Dentre os endereços mais célebres, estavam o MegaUpload e o (convenientemente nomeado) Pirate Bay, que opera até hoje. Sempre que as empresas e órgãos de regulação organizavam-se para derrubar os sites que ofereciam arquivos digitais de maneira gratuita, dezenas de novos endereços, chamados de mirrors, eram erguidos em seu lugar. À semelhança da defesa impenetrável dos criminosos das Bahamas de outros tempos, a liberdade absoluta imperava nesses sítios eletrônicos, enquanto notas em fóruns e mensageiros instantâneos instituíam os princípios pelos quais suas comunidades com usuários de toda parte do globo deviam guiar-se, a despeito de suas ações infringirem leis que regulavam territórios separados por linhas desenhadas em um mapa. Também como naquele tempo, parte considerável das pessoas que não tomavam parte direta nessa disputa simpatizavam com os rebeldes digitais, conseguindo enxergar certa dose de justiça ou ousadia revolucionária em suas ações. Ou isso, ou apenas era interessante baixar coisas de graça mesmo.

Nos 1700, as coisas mudaram quando a atividade dos piratas começou a prejudicar muito os comerciantes do Caribe e os cofres do rei George. Woodes Rogers, há muito esperando uma oportunidade para tal, foi nomeado governador das Bahamas com a missão de trazer ordem ao local. Com esse apoio inicial da coroa inglesa e diante de ações mais severas de outras nações contra a pirataria, o contorno de uma república pirata foi completamente apagado com o assassinato ou morte repentina de cada um de seus líderes. Barba Negra foi assassinado por um instrumento vital para essa campanha: os corsários. Contratados por autoridades como governadores ou juízes, com chancelas reais, esses ex-piratas tinham liberdade para saquear navios de nações inimigas e o propósito de destruir ameaças ao poder das metrópoles com posses ou fontes de renda centradas nas Índias Ocidentais, como eram chamadas as ilhas da América Central.

Um cerco parecido foi organizado contra a pirataria na internet entre 2009 e 2012, com investigações policiais internacionais e processos judiciais que culminaram no encerramento de dezenas de sites e no fechamento do MegaUpload de Kim Dotcom e prisão de Peter Sunde, do Pirate Bay. Mais tarde, Kim fundaria um novo site, o MEGA, enquanto Sunde se afastaria do Pirate Bay (ao menos publicamente) para dedicar-se ao ativismo na internet. De outro lado, uma ameaça ainda maior tomava forma contra os bucaneiros digitais.

Netflix, Spotify, Uber e Dropbox ofereciam produtos e serviços que ostentavam, em alguns de seus pacotes, os termos “ilimitado” e “sob demanda”, prometendo saciedade para os anseios de consumo, troca e armazenamento da nova moeda cobiçada em nosso século: informação. Esses novos atores faziam isso sob a chancela da legalidade, com a cobrança de preços módicos e segundo seus próprios termos — não muito diferente do padrão de operação dos corsários de outros tempos. Também como os caçadores de piratas, essas empresas ganharam a simpatia da opinião pública, conseguindo um nível de adesão e financiamento massivo para suas atividades.

A partir daí, o número de usuários de sites de pirataria despencou. Dessa forma, com o baixo número de acessos, os sites perderam receita com verbas de publicidade e doações para financiamento de operações de manutenção e servidores dedicados. O principal sistema de downloads dos arquivos roubados àquela altura, o torrent, depende de uma quantidade considerável de computadores ligados com acesso aos arquivos (os seeders) para oferecer boas velocidades e, com o número decrescente de aparelhos nessas condições, o mundo maravilhoso da pirataria já perdia para o das assinaturas legais em matéria de conveniência.

Mesmo que marcos importantes tenham sobrevivido — tal como nos tempos da Nassau pirata — em notícias e reportagens publicadas pela imprensa, produzir uma crônica densa como a de Woodward pode ser mais difícil. Muitos dos arquivos, registros de visitas, endereços e recursos audiovisuais dos sites piratas de outrora perderam-se, tanto pelas ações judiciais que exigiam sua retirada do ar, quanto pela falta de manutenção dos servidores que os suportavam.

O que há no horizonte

Empunhando uma luneta para observar o que temos pela frente, há múltiplas ondas em curso.

A plataformização, objeto de pesquisa de centenas de acadêmicos na contemporaneidade, foi eleita por André Lemos como um dos grandes desafios da cultura digital do nosso tempo. Trata-se do resultado do crescimento descontrolado de grandes empresas de tecnologia, suportado pelos dados dos usuários de seus serviços, entregues em troca do acesso aos recursos de plataformas como o Facebook, a Amazon ou o Google. Esses gigantes desafiam a legislação dos países nos quais mantêm operações, instalando-se em cada camada da gestão pública de maneira indireta, como pela oferta pervasiva de seus serviços, ou direta, ao assumir a gestão de dados e serviços de cidades inteligentes, por exemplo. Suas ações são reguladas por normas que foram estabelecidas, em grande medida, por eles mesmos. Assim, removem conteúdos legítimos sob o argumento de irem contra seus regimentos internos e permitem a circulação de discursos e práticas que desrespeitam direitos humanos fundamentais, por exemplo.

A Web nasceu como um território relativamente “livre”, ocupado gradualmente pelo registro de domínios, dos quais muitos pertenciam a iniciativas que não visavam o lucro, mas o bem comum, como a Wikipedia. Caso a Internet das Coisas possa ser vista como um novo mar para explorar, sua carta de navegação já parece dividida entre as potências de nosso tempo, antes mesmo de os navios terem sido lançados ao mar. Há alternativas de código aberto e de uso e acesso livre em curso que ainda não parecem ter ganhado força suficiente para fazer frente aos sofisticados ecossistemas inteligentes das big tech.

Os piratas, no entanto, resistem. O cerco às suas operações montadas sobre estruturas independentes e a coleta e vigilância distribuída de dados deixaram suas táticas ainda mais ousadas. O Google recentemente revisou seus limites para armazenamento no Drive, depois de múltiplos relatos de uso da plataforma para compartilhar conteúdo roubado de maneira gratuita. A Netflix, num movimento parecido, pretende impedir que um único assinante compartilhe sua conta com outras pessoas sem assinatura.

A entrada de dezenas de outras companhias no mercado de streaming parece ter encarecido muito o consumo de mídia dentro dos parâmetros legais e, por conta disso, o uso de sites piratas antigos e inéditos já começa a registrar aumento novamente.

A conclusão desenhada aqui sobre os rumos da pirataria ainda parece incerta, mas não há dúvida sobre o ímpeto que move suas velas. Desde muito antes dos canhões explodirem no Caribe em busca de ouro e prata, os resistentes já se esgueirevam pelos furos das leis. E enquanto houver poderes instituídos, haverá resistência e aproriação.

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